29 de fevereiro: o banal, o interessante e o raro
DOI:
https://doi.org/10.54143/jbmede.v4i1.169Palavras-chave:
-Resumo
ÀS COLEGAS MÉDICAS E AOS COLEGAS MÉDICOS,
Você já esteve do outro lado da equação? Já sentiu na pele o quão desesperador é ser o paciente? Já sentiu o abraço forçado da incerteza e quis fugir? Já foi visitado pelo sentimento mais puro de impotência e não conseguiu renegá-lo? Já sentiu a solidão, o medo e as dores, até mesmo das pequenas intervenções, que só você é capaz de reconhecer? Se não viveu isso e não faz ideia do lugar de que falo, te pergunto, então, se já teve um ente querido do outro lado da equação. Já sentiu a angústia de não saber o próximo passo? Já se amparou nos seus conhecimentos técnicos para ocultar seus medos e apreensões mais carnais? Já se afogou na realidade e percebeu o quão impotentes nos tornamos diante de certas situações que a vida nos coloca?
É frente a esse sentimento e reflexão que te escrevo. Para você, que tanto estudou para estar onde está, que tem sonhos e planos de alçar voos cada vez mais altos, ou para você que já encontrou a realização profissional e deseja apenas mantê-la: espero que não tenha que atravessar nenhuma dessas situações de forma turbulenta, nem no decorrer de seu ato e nem em sua finitude. Mas existem três palavras do nosso cotidiano sobre as quais precisamos urgentemente conversar a respeito: o interessante, o banal e o raro.
O “interessante”: adjetivo corriqueiramente utilizado para classificar alguns casos médicos.
Entendo a curiosidade médica e o quanto esse termo automaticamente atiça a tão famigerada sede de saber que nos inunda e nos é instigada durante nossa formação para que não se sacie. Mas me pergunto quantos colegas e mestres nos lembram de olhar para aquele ser humano, aquele ser assustadoramente igual a nós, sem anulá-lo e sem reduzi-lo ao seu CID? Se você, assim como eu, carecer dessas lembranças em algum momento, espero recordá-lo de toda a pluralidade e a história que existe em seu paciente e que vai para muito além daquela patologia.
Para aqueles que têm seu caso considerado e taxado como “interessante”, fornecemos a ampla vantagem de gerar interesse extra até nos mais antigos na estrada do cuidar. Nós nos empolgamos com o diferente e somos impulsionados pela sede do saber. Essa sede pode vir de forma tão avassaladora que nos esquecemos do quão desinteressante para nosso paciente deve ser ter aquela patologia. Uma vida reduzida, em segundos, a um CID.
Em contrapartida há o “banal”: classificação dada a casos habituais, sem grandes mistérios,
o famoso “mais do mesmo”. Uma sepse de foco urinário sem sinais de resistência antimicrobiana, uma broncopneumonia por streptococco sem sinais de alarme, um acidente vascular cerebral isquêmico sem indicações de terapia de reperfusão, um acidente vascular cerebral hemorrágico por pico hipertensivo: a gama desses casos se estende, mas a verdade é que, se pararmos para pensar no que existe por trás da banalidade, também podemos nos deparar com uma individualidade nada banal.
Na banalidade e na recorrência, nos esquecemos de Joana que apesar de uma infecção de trato urinário sem complicações viverá dias de muito incômodo durante o tratamento, de Roberto que a partir dali carregará um déficit motor em hemicorpo direito, de Maria que, apesar de ter uma recuperação plena ao fim de dias de cuidado intensivo e meses de reabilitação, enfrentará dias desafiadores e exaustivos e viverá o fim da vida que levava. Essas pessoas têm em comum a obrigatoriedade que lhes surge de enfrentamento de sua patologia, a qual, há poucos segundos, era apenas uma desconhecida e, agora, instala-se forçando o surgimento de uma relação estabelecida pela força do acaso e/ ou destino – chame como quiser.
Caminhando para o outro extremo do banal, deparamo-nos com o “raro”: patologias enquadradas com base em uma classificação numérica relativa à sua baixa ocorrência, em termos de população mundial.
É aceitável, extremamente compreensível e até esperado que, no meio de um oceano de tantos outros conhecimentos, o raro não seja de domínio técnico de muitos de nós. Parece que, com o caminhar, nós nos esquecemos de conversar sobre a importância de reconhecer limitações e ter uma comunicação transparente com nosso paciente de que, naquele momento, carecemos de mais informações, mas que nos comprometemos a buscá-las da melhor forma possível. E acredito que essa seja uma das melhores condutas nesses casos.
Por outro lado, o que não deve acontecer é nos agarrarmos nessa titulação de raridade na esperança de nos eximirmos da obrigatoriedade de, ao menos, fornecer amparo e conforto para aquele paciente que nos procura em busca de ajuda. Essa nossa atitude, muitas vezes motivada pelo medo do desconhecido, anula o centro do nosso cuidado e nos distancia de algo que também nos compete: a missão de oferecer formas de aliviar sofrimentos.
Diante da formação médica, com uma avalanche de conteúdos, entendo como circunstancial o ato de desvalorizar os rodapés de livros ou os informes extras que se apresentam como curiosidades teóricas ao longo do ensino, e, dessa forma, informações sobre patologias raras acabam sendo negligenciadas. Acredito, porém, que o verdadeiro erro surge quando, mesmo diante do raro e do novo, recuamos e nos refugiamos em nossos medos e inseguranças técnicas, esquecendo-nos do indivíduo que está ali na nossa frente. Ele, com certeza, não quis estar nesse lugar de raridade. Ele e sua família provavelmente já vivem e ainda viverão lutas que não conseguiremos dimensionar, apenas por serem raros.
No meio de uma sociedade tão plural e mesmo diante de tantos avanços na medicina, esse paciente enfrentará dificuldades em lidar com aquela condição que acompanhará sua vida, apenas por ter nascido ou se tornado diferente no meio de tantos outros. Frequentemente ouvirá que seu caso é “interessante” e que desperta curiosidade e motivação em alguns profissionais; ouvirá que não há o que ser feito, pois, ao mesmo tempo que é interessante, é raro e, ali, ou naquele tempo, ainda não existe conhecimento sobre aquilo; ouvirá essas e muitas outras coisas quando, na verdade, grande parte do que gostaria de ouvir de seu médico é que não está sozinho, que poderá contar com ele para o que vier e não lhe faltará apoio para resolução de intercorrências ao longo da jornada.
Nesse dia 29 de fevereiro, dia mundial das doenças raras, vale lembrar que, atualmente, somos mais de 10 milhões de brasileiros que se enquadram no grupo de portadores de diagnósticos tidos como raros, transitando por espectros distintos de história, gravidade, comorbidades e trajetórias.
Este texto vem como uma ode à valorização da individualidade e da história de cada um de nossos
pacientes. Que você não seja ingênuo, como eu já fui, ao pensar que meu caminho profissional não cruzaria com o de algum dos mais de 10 milhões de brasileiros com alguma patologia rara.
Que nossa rotina atribulada e nossos medos do contato diário com a finitude não anulem trajetórias, não desmereçam patologias, não reduzam vidas a adjetivos e atribuições qualitativas, e que, acima de tudo, não nos esqueçamos dos nossos objetivos de cuidado. Não nos esqueçamos da importância de reconhecer limitações técnicas, que não reduzamos nossos pacientes à banalidade, ao interessante desprovido de identidade ou à raridade longe do alcance. Que reconheçamos nossos medos da finitude e não os projetemos em nossos atendimentos. Que nos recordemos do impacto positivo de um acolhimento, do poder de um olho no olho sincero, da escuta ativa, da cumplicidade e possamos entender que nossa função primordial pode ser bem executada quando nos colocamos à disposição para promover o conforto.
Que, diariamente ou sempre que necessário, nos recordemos sobre o verdadeiro “ser médico(a)”.
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